CRÔNICAS DO FANTASMA: O ESPÍRITO-QUE-ANDA

Publicado pela primeira vez em 1936, O Fantasma (The Phantom, no original) possui uma enorme relevância histórica para o mundo das histórias em quadrinhos norte-americanas, tendo sido o influenciador de vários motifs recorrentes no universo dos super-heróis. Contudo, seu legado e sua memória na cultura popular foram cada vez mais obscurecidos ao longo das décadas, sendo um personagem esquecido pelas gerações atuais. Ainda assim, o personagem retornou recentemente com uma coletânea de suas melhores histórias clássicas: Crônicas do Fantasma, parte da coleção A Era de Ouro dos Quadrinhos. Tendo em vista seu papel complexo no futuro das HQs, em adição a esse excelente compilado de contos do herói – que conta com clássicos e inéditos, além de um prefácio essencial sobre a saga escrito por Thiago Gardinali –, a criação de Lee Falk merece ser revisitada.

Crônicas do Fantasma é publicado pela Mythos Editora desde 2019

Origens e Concepção

Nascido Leon Harrison Gross (1911-1999), esse jovem judeu do Missouri fascinado por mágicos e pelo misticismo viria a se tornar cartunista, escritor, diretor e produtor teatral. Assumindo o apelido de infância Lee e o sobrenome de seu padrasto (Albert Falk Epstein) após a faculdade, Leon se torna Lee Falk, e lança em 1934 seu primeiro grande personagem nas tirinhas de jornais: Mandrake, o Mágico. Para ajudar a atrair mais leitores para sua nova criação, Lee Falk criou uma falsa “biografia oficial”, se passando por um experiente viajante internacional e estudioso das artes místicas do Oriente. Essa artimanha poderia ser mal vista hoje, mas retrata bem a aura sonhadora e ingênua da época.

Com o inesperado sucesso de Mandrake, a editora King Features Syndicate encomendou a Falk uma nova série. Originalmente sendo oferecida um arco de histórias sobre o Rei Arthur, a editora recusou a proposta, requerendo um novo personagem a Falk. Baseado em muitos protagonistas de gêneros apreciados por Lee – como Tarzan, Zorro, Mogli, El Cid –, O Fantasma é lançado em 1936.

Edição em capa comum e 100 páginas com arte em preto e branco

Importância Histórica

Precedendo Superman por 2 anos e Batman por 3, o Fantasma se coloca historicamente como uma figura de período de transição: por um lado retendo características de heróis do gênero Pulp e Jungle adventures, e por outro estabelecendo várias pedras fundamentais nas tirinhas de jornais, como a estética de heróis fantasiados que em breve surgiria na DC e na Marvel.

O gênero Pulp Magazine/Fiction se caracterizava por obras baratas – daí o nome pulp (polpa), referindo-se ao material utilizado (papel de baixo custo feito com polpa de madeira) –, tendo sido publicadas de 1896 até 1950. Sendo sucessor do Penny Dreadful (histórias de terror em panfletos) do século XIX, as pulps normalmente abordavam aventuras sobre temas fantásticos, sobrenaturais ou investigativos, por vezes envolvendo cenários exóticos (florestas, piratas, espaço sideral, cenários urbanos opressivos), com tom apelativo (estereótipos, violência e sexualidade) – Doc Savage, Flash Gordon, Buck Rogers, O Sombra são exemplos famosos da era. Dessa estética, o Fantasma toma emprestado sua localidade (a fictícia nação africana de Bangalla), seus inimigos (piratas, magos, mercenários, femme fatales), e ambientação (histórias que beiram a mistura da aventura fantástica, ação e mistério).

O Fantasma (Paramount, 1996)

Contudo, o personagem de Lee Falk é pioneiro se comparado com seus sucessores hoje famosos: não possui superpoderes (se utiliza de ilusão e teatralidade para incutir em seus inimigos a noção de que ele é um espírito imortal); usa amplamente o seu símbolo, a marca de uma caveira; sua base de operações é dentro de uma caverna; possui uma dupla identidade com vastos recursos; é o primeiro herói a usar um collant escuro e máscara com pupilas brancas; e se comporta como um vigilante. O Morcego da DC Comics deve muito a ele. Além disso, é o primeiro herói de legado, passando o manto de pai para filho, criando a ilusão de imortalidade ao herói através dos séculos – o primeiro homem a usar o disfarce de Fantasma vivera em 1536, sendo assassinado por piratas, para então ser substituído pelo filho em busca de vingança. Esse tipo de legado não é algo incomum para os leitores de HQs modernas: Flash, Lanterna Verde, e tantos outros protagonistas fazem uso desse mesmo recurso narrativo.

Um Retrato de Outra Era

Apesar de todo o peso histórico positivo, o Fantasma também é um reflexo do pensamento dos anos 1930. Suas histórias, se recontextualizadas, denotam vícios comuns da era, como o salvador branco em uma nação de outra etnia, papéis femininos reducionistas, e estereotipados vilões asiáticos.

Outras etnias sofrem com estereótipos da época

Tendo em vista tais aspectos, sua obra deve ser revisitada com um olhar crítico sobre o período, reconhecendo suas qualidades e retrocessos; e positivo sobre como o enredo de quadrinhos avançou desde então. O Fantasma se coloca mais uma vez no intermédio de dois mundos: uma relíquia do passado (pelas virtudes de sua época, e erros hoje percebidos), e uma obra fundamental no entendimento da gênese das Histórias em Quadrinhos modernas.

Em suma, o Fantasma de Lee Falk é uma importante etapa da constante evolução na cultura pop de comic books, e, se você se interessou pelo personagem, a coleção Crônicas do Fantasma (Mythos Editora) figura como leitura essencial para o entendimento de mais de 80 anos de mudanças históricas e emblemáticas.

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