“Que se faça a Luz”: 10 Dias Perdidos, de Sam Hart

O cálculo do tempo, de milissegundos a anos, décadas, é uma estratégia humana tão elusiva quanto a natureza cronológica em si. A mensuração do tempo pela raça humana, apesar de artificial, é uma ciência baseada na observação de elementos do mundo natural – a rotação e translação da Terra; as estações do ano nos hemisférios; a sombra e luz no decorrer do dia. Contudo, a natureza sempre prevalece em tais cálculos, e não o contrário: se mudássemos o conceito de dia e noite, ainda assim a rotação do nosso planeta permaneceria a mesma. O mesmo não pode ser dito sobre o universo apresentado em 10 Dias Perdidos, mais recente obra de Sam Hart – o coautor da graphic novel Atômica: A cidade mais fria (The coldest city), publicada aqui no Brasil pela editora Darkside e posteriormente adaptada para as telas como Atômica (Atomic Blonde), estrelando a vencedora do Oscar Charlize Theron.

Em sua nova obra, partindo de uma mudança de Calendário ocorrida na nossa própria História – a transição do calendário Juliano de Roma, para o Gregoriano em 1582 –, cuja dificuldade de cálculos gerou uma réstia que nos subtrai um dia a cada 314 anos e que extinguiu, assim, 10 dias do ano, Hart arquiteta um mundo de astronomia e misticismo. Estrelas e corpos celestes são criados por humanos como homenagens e obras de arte encomendadas por nobres mecenas e, quando as criam, erros de cálculo – como o do Calendário – podem ocasionar efeitos desastrosos no mundo. É neste cenário que encontramos Sophya, a princípio uma personagem ocasional. A jovem auxilia seu irmão mais velho Tycho, e seu mentor Johannes, nos cálculos e criações de corpos celestes, quando é arrastada para uma trama que ameaça o espaço e tempo de maneira épica.

10 Dias Perdidos, que se encontra em seu terceiro capítulo, é uma narrativa intrigante conduzida pelos músculos criativos que definem tão bem o corpo da obra de Hart. Sua delicadeza em criar personagens femininas em busca de autonomia se torna um grande destaque em cada um dos três números publicados – no enredo, o papel de Sophya cabia ao seu irmão, mas ela, por um acaso (será?) o substitui nos ditames do destino, o que a leva, por vezes, a ser subestimada por autoridades masculinas, sendo guiada/defendida por outras mulheres. Seu traço certeiro também é capaz de lhes conferir identidade, sem em nenhum momento fazer uso de sua objetificação sexual descontextualizada. Um sopro de ar fresco.

A mitologia europeia também é outra pedra fundamental do quadrinho, fazendo usos de localidades e entidades do arcabouço mítico nórdico e celta numa estética que chega a lembrar a casualidade de Neil Gaiman: deuses e criaturas sobrenaturais permeiam a obra não com um ar de pompa inatingível, mas sim como personagens descompromissados de um pano de fundo maior, definidos por seus vícios e virtudes. Não obstante, apesar do sentimento de normalidade que tais personagens passam na obra, Hart faz uso de quadros dinâmicos repletos de luz, por vezes épicos, para acentuar o lado sobrenatural de tais criaturas.

Cena do volume 3 (Divulgação)

Luz e sombra, sendo outra característica marcante do autor que utiliza o preto e branco aqui e em Atômica – mas todos os outros gibis dele são coloridos, incluindo um super-herói –, tomam a história de maneira estupenda, fazendo uso de iluminação para se criar formas e sensações, ao invés da sombra que consome espaços. Tal técnica, que cai como uma luva num roteiro cósmico e sobrenatural, permite ao leitor não só observar cenários e interações por outra perspectiva, mas talvez imaginar quais cores seriam possíveis emanar da criação de uma estrela, por exemplo, trazendo um ar mais pessoal, individual e imaginativo para a leitura visual da obra.

Os posfácios também figuram como elemento importante (e aparentemente feitos por profissionais escolhidos a dedo), complementando a absorção e processamento da leitura como um todo. Como aponta Raphael Fernandes (Historiador, editor e roteirista) no segundo capítulo, a luta de Sophya não é contra a destruição, pois essa gera mais criação no universo – a luta em 10 dias perdidos é contra a estagnação. Tais observações não só enriquecem a trama, mas permitem insights indiretos no processo criativo do próprio Sam Hart.

Por fim, caso tenha se interessado por 10 dias Perdidos, o quadrinho continua em publicação por meio de financiamento coletivo no Catarse, e agora entra em mais uma fase de arrecadação pra completude do projeto, que englobará 8 capítulos, segundo seu autor. Entre as recompensas para quem apoiar o projeto, figuram todos os demais números anteriores, além de outros quadrinhos do autor, bem como seu autógrafo no volume. Apoie o projeto independente AQUI.

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